sexta-feira, 8 de dezembro de 2006

Enfermeira que te acompanha



Sei que um dia vais partir, não hoje, amanhã talvez, mas será melhor num dia destes…, depois, depois de aceitar que vais.
Ainda hoje não te tinha ido “espreitar”, ver o teu olho azul cintilante, o teu corpo agora diferente…, cuidar de ti. Dizer-te um “Bom dia” e ouvir-te... a tua voz calma, a tua voz doce.
Hoje já no final do meu turno aproveitei…, fui ajudar a minha colega, a ajudar-te, fui para estar contigo. Fui “posicionar”, dizemos nós habitualmente, como se realmente fosse mesmo só isso… Não, não disse à minha colega que as minhas intenções eram cuidar de ti, de quem cuidei há uns dias atrás de forma mais próxima. Há uns dias atrás quando ainda davas aqueles pequenos passos teus agarrado no meu braço, quando te levava à casa de banho em cadeira de rodas, quando te lavei a cabeça quase calva, te dei o pijama e te ajudei a vestir e… e… te deixava em frente ao espelho a fazer a barba. Que bem te cuidavas…, com a minha, com a tua ajuda, com a nossa. Metias um sorriso no rosto porque conseguias. Deixei de cuidar de ti, porque fiquei nas “salas/quartos” onde não estás, onde não me distribuíram e ao longe fui te seguindo com o meu olhar…, o que foste deixando para nós fazermos por ti, o que já não consegues fazer por ti…, mas não te preocupes, aqui, há sempre alguém..., eu, ou alguém, há sempre.
Hoje já não vestes o teu pijama azul, ou aquele que tens com uns bonecos engraçados, aqueles que a tua esposa te traz, ou melhor trazia…, porque hoje estão guardados na tua mesa-de-cabeceira, já não te servem…. Como tu estás…, tens o teu corpo a querer saltar dos seus limites, a querer rebentar a sua própria pele… ou será a tua alma a querer partir?... E que teimosamente nós não deixamos? O teu pijama azul já não te serve…., hoje não. A tua barba por fazer, por correres o risco de sangrar e não parar… e eu, eu que te queria mostrar o meu sorriso não o posso fazer, a máscara que uso, as luvas que calço e a bata que visto são para te proteger a ti… porque estas completamente sem defesas… tens o teu corpo vulnerável… e a mente? E a alma?
“Vire para lá, vire para cá…” diz a colega enquanto mudamos a cama, a fralda… “Não faço nada de jeito…” - dizes tu – “Então não faz?” - digo eu – “Ajuda-nos naquilo que tem mais força, naquilo que consegue, está aqui… tem força de vontade…” - estamos juntos…, penso eu. Antevejo a dor no teu rosto, no teu olhar, enquanto te viras, por não quereres esforçar-nos pelo peso do teu corpo…, contemplo-te a fazer o que podes e o que não podes…, a dor no teu olhar mostra-me a pele a rebentar pelo teu copo de tão repuxada que está e mesmo assim… fazes tudo para que nós não façamos demais por ti, porque afinal ainda és capaz, mas por ti nada é demais… é querer-te bem.
Hoje falei pouco…, mas não resisti em falar-te de novo dos teus olhos azuis cintilantes. Estavas deitado de lado… senti o teu corpo quente junto ao meu, segurava-te enquanto a minha colega punha os lençóis lavados e quentes na outra metade da cama. Observei aquela dor no teu rosto e afaguei-te o ombro, o braço, “uma festa”…. - as festas que as crianças nos dão que sabem tão bem, quentes e afagadas - tens medo de cair seguras-te a mim, vi a dor que isso te causa. “Sr. Amado? Não se preocupe, eu estou aqui, não cai, acredite! Eu seguro-o…” – aliviaste, sentiste-te seguro numa jovem mais pequena que tu, numa jovem que podia ser tua filha, neta.., sentiste que podias acreditar em mim, alguém que te acompanha há algum tempo. Sentiste confiança na minha voz, mais do que talvez na força física do meu corpo, acho que naquele momento se fosse uma anã ou uma “Olívia palito” mesmo assim naquela altura irias acreditar em mim…sentias segurança na minha presença. “Espere um pouco vou buscar creme, para lhe espalhar no corpo” disse a minha colega… foi uns dois minutos, enquanto esperava contigo permaneci calada…segurava-te… sentia o teu corpo quente encostado à minha roupa… Tu olhaste-me lá de baixo, do leito, agarraste-me nas mãos e depois afagaste-me o braço, apertaste-me a mão, as luvas e de novo o braço… encontraste uma brecha entre a minha luva e a bata azul que vestia… e afagaste-me perto do pulso, senti as tuas mãos macias e quentes, como que a agradeceres-me, transmitiste-me calma, também segurança, que estavas bem ali, ou para qualquer lugar onde fosses brevemente… Em vez das luvas preferiste a minha pele, o meu pulso… - será que te levará a uma morte rápida capaz de te provocar uma infecção?... estás completamente despido das tuas defesas corporais… Questiono-me. Não acredito que não, lavo-me sempre até aos cotovelos e desinfecto-me com aquele liquido azul, que tem a cor dos teus olhos…. -Não, não poderia um momento como este. Apago rapidamente este pensamento da minha cabeça tal como veio. Quis antes estar contigo, apenas estar.
Chegou a colega, mais uma volta para lá, deixas-me a minha pele… ficas deitado de costas, no teu leito branco. Ajeitamos-te como gostas e queres, como tu sempre querias antes de não o conseguires fazer. Aí vamos nós, despeço-me com um simples “Até amanha”, mas ainda a segurar a porta e com ela entreaberta, baixei a máscara e mostrei-te o mesmo sorriso… que conhecias, que ansiavas ver e só o viste entre os meus olhos, de certo que não te prejudicava, antes partilhava contigo, o mesmo sorriso que me estavas a devolver. Uma troca de olhares entre um castanho terra acabada de molhar pela chuva miudinha e um azul mar calmo em dias nublados, tranquilo seguro de partir em breve como a maré.
“Ate amanhã”, será que estarás lá amanhã? Será que te verei mais uma vez?**

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